NUMA TAÇA DE CRÂNIO

Não resistirei a morte, amigo. Eu sei.
Talvez ela seja a parte mais fluida da vida.

Mas tu que me tens como alguém
que molha as plantas,
troca a areia dos gatos
e paga as dívidas.

Não sabe quase nada do que sou
ou do que poderia eu ter sido
se não tivesse me esquecido
        no bolor da inocência.

Ah, só a decadência mesmo
para trazer essas estâncias.
Seria de bom grado agora
            a ignorância, 

esse chá adocicado. 

Seria bom,
mas não é o caso. 

Vem, bebe comigo,
desse copo vazio.

A verdade é que são tantas coisas
a engolir o nosso tempo,
as mensagens, os remédios, 

a pressão da panela 
sobre a cabeça das crianças.

Ah, nossas crianças! 

Nossas crianças estão tão preocupadas
            para serem alguém.


Mas olhando de perto
a natureza não pressiona ninguém.
Não grita para as pedras se tornarem
                passarinhos.

Ela não diz:
-tu macieira, hoje vai dar uva! 

Ou ordena ao leão:
-vai se alimentar de alface. 

Já a humanidade 
não tem mais rubor na face:

-Vamo extrair o ouro
dos nossos semelhantes
“Somos os alquimistas da modernidade”.

Temos likes,
não tememos o tic-tac.

Vamos!
enchamos nossos bolsos
            enquanto é tempo!

Não resistirei a morte, amigo.
Ela é a parte mais fluida desse momento.

Sempre quis dizer…

Como tudo isso é medíocre,
essa febre de superioridade.

Diplomas de pregos
e status de parafuso.

As disciplinas
e os horários dos contentes.
Há mais morte no contentamento
        que na própria morte.

Gostaria de ser menos gente, migo
nesse momento de partida.

De pelo menos nesse instante

ser alguma outra coisa
que soasse mais viva.

Não pré-escrita.

Sair da curva,
    quebrar a linha

dar de louco.

Ó calminha…
Não vá embora ainda, amigo.
Fique mais um pouco.

O copo transborda.

Devo sofrer de ansiedade,
esse delírio moderno
    de viver fora da realidade.

Ah, enchamos nossas taças de nada!
Pois do nada é que virá a grande Arte. 

Pode ter certeza.

Não resistirei a morte 
e nem regarei meu nome, amigo.

Quero ter contigo
só um instante de lucidez.

Tá vendo?
De novo tá chegando o fim do mês.

Mas  talvez
eu nem chegue
        ao fim da taça.

Agora vá amigo.
Sem gorjeta dessa vez.

C.S.

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